Top
Image Alt

Rotas do Vento

Mosteiros dos Himalaias e Festivais do Ladakh, India

India: Mosteiros dos Himalaias, Festivais do Ladakh – Gonçalo Velez

O voo de Nova Delhi para Leh sobrevoa os Himalaias indianos e oferece-nos durante todo o tempo um panorama espetacular de montanhas nevadas e de glaciares. Fiz a viagem com a testa pressionada contra a vigia encantado com as paisagens.

O Ladakh está situado no planalto tibetano, no extremo noroeste da India. É uma zona muito remota pois os acessos através das altas montanhas são difíceis e a estrada está interrompida pela neve durante pelo menos seis meses no ano.
Leh, circundada por grandes montanhas, é a antiga capital do reino do Ladakh, também conhecido por Pequeno Tibet.
A sua rua central é longa e muito cosmopolita, e o bazar é um importante ponto de encontro e de troca de géneros. Aí prolifera o pequeno comércio que me dá a conhecer um pouco do estilo de vida dos ladakhis: o que comem e vestem, as alfaias e utensílios que utilizam, as suas produções artesanais e a sua arte.
Sendo um País budista, achei estranho que possua uma mesquita e um bairro muçulmano no centro da cidade. Informam-me que a presença da mesquita se deve ao casamento do rei do Ladakh com uma princesa de Kashmir (muçulmana) no séc XVII.
O palácio real, ainda propriedade dos monarcas, domina a cidade do alto de uma colina. Acima dele situa-se o mosteiro Tsemo (séc XV), engalanado com coloridas bandeiras de oração.
Vale a pena a longa caminhada até aqui para se apreciar o panorama da cidade rodeada de verdejantes campos agrícolas.
Leh situa-se no longo vale cavado pelo impetuoso rio Indo. As aldeias da região contam poucas famílias pois a terra cultivável é escassa, sendo a pastorícia um meio de subsistência importante. Seguindo o modelo tibetano, a atividade religiosa foi preponderante na vida deste povo e aí encontramos inúmeros mosteiros, quase todos em atividade. Viajar no Ladakh implica obrigatoriamente visitá-los pois é neles que está depositada uma profunda cultura ancestral.
Assisti ao festival anual do mosteiro de Stagna cujo propósito era o de dar graças pelas colheitas. Quando, de manhã, nos aproximávamos do mosteiro já se ouviam as enormes trompas telescópicas que ressoavam grave e possantemente pelas montanhas.
À semelhança das nossas procissões, esta festa reúne todos os aldeões da área numa ocasião em que podem participar na sua religião e auferir mérito religioso. É também um importante acontecimento social para o qual as pessoas vestem as suas melhores roupas e onde convivem despreocupada e alegremente. As cerimónias que mais agradam ao povo são as danças com máscaras acompanhadas de música de instrumentos de sopro e tambores. Em certas ocasiões, as pessoas também participavam na dança e era notório que se divertiam bastante.
Na planície sob o mosteiro, realizaram-se provas de tiro com arco tradicional. A maioria dos desportistas não estavam muito treinados, mas o que contava era o são convívio e a boa disposição que reinava entre eles e a assistência.
Por ser uma manifestação genuína da tradição deste povo, e não uma atração turística, considero que esta foi uma experiência de uma enorme riqueza cultural.
Fiquei entusiasmado por o meu guia, Wangchuk, me ter informado que iríamos a uma festa de aniversário de um parente, nessa noite na sua aldeia a leste de Leh, a véspera de iniciarmos o percurso pedestre pelas montanhas. No Ladakh os aniversários festejam-se uma vez na vida de uma pessoa, normalmente alguns meses após o nascimento.
Não podíamos comparecer sem levar as katas e fomos ao bazar de Leh comprá-las. Manda a etiqueta nos países de cultura tibetana que os visitantes apresentem katas aos seus anfitriões. É um costume ancestral na região e um sinal de cortesia e de profundo respeito. As katas oferecem-se igualmente a quem parte por um período prolongado. Também são oferecidas às estátuas das divindades nos mosteiros ou são presas às rochas e a ramos de arbustos em locais elevados nas montanhas. A kata tem as dimensões de um cachecol e é de cor branca. Infelizmente já é difícil encontrá-las em seda ou em linho fino e tivemos de contentar-nos com as de poliester.
O povoado de Basgo situa-se num longo vale encravado entre montanhas que a estrada atravessa numa das extremidades. O mosteiro, semi-arruinado mas ainda activo, domina a região do alto de um elevado promontório. Um pouco mais acima notam-se ainda algumas muralhas da antiga fortaleza. As casas estão dispersas pelos campos de cultivo que apresentam, nesta época, algumas áreas cobertas de gelo compacto. As filas de choupos e de salgueiros, uma visão típica destas altas paragens, assinalam o curso de valas de irrigação.
Cruzámos dois homens que conduziam um enorme yak. Explicaram que viajavam há cinco dias através das montanhas e que tencionavam vender o animal numa destas aldeias. “Não vão ter muita sorte”, explicou-me o guia, “o yak emagreceu com a viagem e os aldeãos sabem que ele não sobrevive a esta altitude”.
O Wangchuk apontou para a casa onde se realizava a festa, situada em local preponderante numa encosta da montanha. Notava-se que pertencia a gente abastada pois tinha uma grande dimensão e três pisos. Enquanto caminhávamos ao longo do ribeiro fomos observando os grupos de convivas, aperaltados para a ocasião, que convergiam de vários carreiros, alguns montados em cavalos adornados com arreios reluzentes. As mulheres mais ricas usavam o toucado característico do Ladakh, o perak, que desce pelas costas e é incrustado com fiadas de turquesas. Consoante a posição da sua detentora, ele pode ter três, cinco, sete ou nove fiadas, estando estas últimas reservadas à alta nobreza e à família real.
Como a maioria das casas no Ladakh, esta também tinha os característicos amuletos com crâneos de cabra pendurados nas paredes exteriores.
Senti que penetrava no íntimo de uma civilização centenária, até culturalmente mais antiga do que a nossa.
Após os cumprimentos aos senhores da casa fomos convidados para uma sala onde seria servida uma refeição ligeira aos recém-chegados. O mobiliário resumia-se a coloridos tapetes no chão rodeando a divisão e a mesas baixas e oblongas. Das paredes pendiam algumas fotografias de familiares, algumas bastante antigas, de lamas venerados e de divindades budistas. Mal nos sentámos, de pernas cruzadas sobre os tapetes, servem-nos chá em taças de porcelana. Nas regiões de cultura tibetana, o chá é fervido longamente em água para obter-se um preparado muito concentrado a que se dilui manteiga de yak e sal dentro de uns cilindros de madeira próprios para o efeito. O resultado, idêntico a um caldo, é bastante agradável. Seguiu-se o chang, cerveja fermentada a partir de cevada, e arroz com pedaços de cabrito servidos também em taças com um suculento molho.
Depois conduziram-nos para o recinto da festa ao ar livre sob grandes toldos. Após saudações, sentámo-nos de pernas cruzadas no solo coberto de tapetes tibetanos, detrás de mesas baixas. Os homens e as mulheres sentavam-se em mesas separadas.
Os criados serviram-nos sutcha (chá salgado com manteiga de yak) e chang (cerveja caseira de cevada), seguindo-se chapatti, carne com batatas, depois dhal-bat (puré de lentilhas com arroz). Senti-me um pouco embaraçado quando constatei que não era capaz de comer o arroz com a mão, e tive de pedir uma colher.
A banda de músicos tocava incessantemente e, mais tarde, os convivas iniciaram a dança. Homens e mulheres em conjunto faziam uma fila por entre as mesas e avançavam com passos lentos e curtos ao ritmo do tambor. Exibiam uma expressão de distante e, de kata (écharpe cerimonial) nas mãos, produziam movimentos suaves e elegantes de acordo com o compasso da música.
À uma hora da manhã o frio já era intenso e passou-se ao salão onde a ceia nos foi servida. A música e a dança não esmoreciam, o chang continuava a correr com abundância e as crianças dormiam no colo das mães.
O anfitrião, dos poucos que falava algum inglês, contou-me que tinha terras e que era lavrador. O seu pai tinha sido um grande mercador e lembrava-se de como ele partia com a sua caravana de yaks e de cavalos para o Changtang.
Nessa época os chineses ainda não ocupavam o Tibet e o comércio era livre. O pai ia sempre armado e combinava viajar com outros mercadores para fazerem frente aos salteadores que na época infestavam os caminhos.
A festa durou toda a noite. De manhã, todos nos dirigimos para a casa de uns familiares, do outro lado do vale, para tomarmos o pequeno almoço. Serviram-nos kolak (tsampa misturada com sutcha), chá e mais chang. No final, insistiram comigo e com o Wangchuk para que os seguíssemos para a casa de outro aldeão pois… a festa prosseguia !
Declinámos com cortesia pois a nossa caminhada através das montanhas tinha mesmo de começar.
Mais tarde, deixaria este País com a memória empolgada de vivências únicas e com a nostalgia de não poder prolongar a minha estadia entre este povo que vive com alegria enfrentando as mais rudes intempéries. Despedi-me do Wangchuk no aeroporto. Pouco antes de partir envolvi-lhe o pescoço com uma kata e ele manifestou uma enorme surpresa que se traduziu em vergonha por não ter sido ele a lembrar-se.

Gonçalo Velez
Dez 1996