Canadá: Grande Raide de Canoa no Québec – Gonçalo Velez
Foi numa tranquila madrugada de Agosto que partimos da aldeia de Sorel, situada entre Montréal e a cidade do Québec, rumo às longínquas terras do Grande Norte.
Pela frente tínhamos 750 km de estrada e de pistas florestais até ao local de embarque da expedição. Atrás de nós, seguiam a reboque três enormes canoas em que faríamos a descida dos 180 km do rio Toulnustouc. A aventura ia começar.
O percurso de estrada até Baie Comeau é muito agradável pois margina o vasto golfo de São Lourenço. Aqui desemboca o canal que dá acesso aos grandes lagos interiores do Canadá. A paisagem renova-se constantemente em enseadas com praias de areia ou arribas rochosas, aldeamentos palafíticos de pescadores, herdades de pequena dimensão e povoados costeiros onde se notam inúmeras casas de férias. Uma das grandes atrações deste golfo é a observação de baleias, golfinhos e focas que, com sorte, se avistam da estrada. Para o interior domina a imensa floresta de abetos, lárices e bétulas que cobre mais de metade da província do Québec e que constitui uma das suas principais fontes de rendimento: o Québec é o maior produtor de papel da América do norte. Atravessamos a reserva de índios montanheiros de raça Essipit, em Escoumins.
Em Baie Comeau penetramos nessa vastidão verdejante e ondulada de colinas suaves, atravessada por cursos de água e por lagos. Esta estrada secundária, conhecida por Highway 389 ou a Estrada do Norte ao Norte, atravessa o território de Manicouagan e é a única via terrestre que conduz à província do Labrador. Foi construída nos anos setenta quando se iniciaram os grandes projetos hidroelétricos no norte do Québec.
Jantamos num restaurante para camionistas em Manic V, a maior barragem do Mundo, e desviamos, mais à frente, por uma pista florestal que nos conduziu à margem do lago Kawashapishkau.
Na escuridão da noite fomos encontrar os inúmeros bidões estanques e sacos que continham todo o nosso equipamento e provisões para os nove dias da expedição, e que haviam sido transportados por hidroavião nesse dia.
De manhã, e após arrastadas impiedosamente as longas canoas vermelhas pela areia e rochas da margem, chegava o ansiado momento do embarque. O Gérald comandava as operações com a sua incansável energia e avaliava as pessoas pela sua corpulência para as distribuir pelos assentos das pirogas. Éramos dezassete pessoas de origem canadiana, francesa, suíça e portuguesa.
O dia estava radioso quando começámos a deslizar suavemente a favor da corrente. Deixáramos para trás a única via de acesso à margem ao longo dos 180 km que a nossa expedição ia percorrer. Exceto os quatro monitores, mais ninguém tinha experiência de canoagem, mas cedo adquirimos a prática de pagaiar. Não tem qualquer segredo: sentamo-nos com uma das coxas encostada à borda da piroga, uma mão agarra o extremo da pagaia, a outra um pouco acima da pá, o tronco deve manter-se direito, e o movimento vai-se aperfeiçoando com a prática. É importante remar à mesma cadência do tripulante que vai à proa para que toda a equipa esteja coordenada e a piroga vogue com a melhor eficiência. Como medida de segurança, levávamos dois rádios de comunicação: um que atingia qualquer posto florestal na região, o outro que emite para qualquer ponto do globo via satélite.
O sentimento de penetrarmos numa Natureza majestosa e possante, praticamente virgem, embriagava-nos de misticismo e de reverência. Os europeus já não possuem territórios selvagens com uma fração da dimensão deste. Espécies como o urso, o lince e o lobo são protegidas e consideradas em risco de extinção entre nós. No grande norte do Québec elas vivem imperturbáveis e ninguém se questiona sobre a necessidade da conservação.
Esta primeira etapa foi a mais movimentada e cansativa, mas também emocionante e muito divertida: iríamos atravessar seis pequenos lagos em níveis diferentes ligados por rápidos. Nessas secções de rápidos, tínhamos de transportar o material para diante e conduzir as embarcações pela margem até onde se tornaria a embarcar – nada melhor para cultivar o espírito de companheirismo e de entreajuda. Houve alguns curtos troços com pequenas quedas de água em que tivemos de arrastar as pirogas sobre as rochas da margem, usando o nosso melhor equilíbrio e prudência para evitar escorregarmos. A meio da tarde desembarcámos numa esplêndida praia. Montado o acampamento, cada qual dedica-se ao que melhor lhe apraz. Uns agarraram nas canas de pesca e foram pescar para um braço de rio ao abrigo da corrente, outros muniram-se de serrotes e de machados e aplicaram-se a cortar lenha para a fogueira do jantar.
Fiquei surpreendido com a naturalidade e a rapidez com que os canadianos abatem bétulas e as transformam em pequenos cepos para a fogueira, ou em postes para suster os toldos. Senti-me deslocado na mentalidade que me governa e que apela à conservação – ainda não me tinha habituado à abundância. Havia quem lesse ou simplesmente contemplasse a extrema beleza e tranquilidade daquele ambiente. Os cinco suíços decidiram dar uma volta a pé pelas redondezas e fui com eles. O Martin, biólogo e ferrenho entusiasta da Natureza, insistia que tinha de ver um urso, um lince ou um alce, … ou todos. Ele era um dos responsáveis pelo projeto de conservação do lince na Suíça e conhecia bem o lince da Malcata. Alguns dos seus amigos, sobretudo a Daniella, contestavam: “Queres ver um urso para quê? Para apanhares o maior susto da tua vida ?!” Mais tarde, o Yves, um dos monitores de canoagem disse-me que todos os estrangeiros que vinham ao Québec traziam uma quase obsessão de ver um urso. Mas que não o recomendava pois, com um urso à vista, o único procedimento seguro é permanecer imóvel e berrar. “Não acredito que alguém com pouca experiência da floresta seja capaz de conter os nervos e ficar imóvel. Se desatas a correr, ele corre atrás de ti, e aí podes estar em maus lençóis. Podes tentar subir a uma árvore que eles também o fazem. Contudo, nesta zona só há ursos negros que são pequenos e pouco temíveis, exceto se tiverem crias.”
No dia seguinte levantei-me cedo e fui até ao lago que descobríramos na véspera. Tinha ouvido o Martin dizer que iria para lá de madrugada. No caminho notei diversas árvores roídas pelos castores, algumas tombadas. Quando descia para a margem, no meio de vegetação densa, ouço um rugido a poucos metros de mim ! Estremeço e quedo-me imóvel. Passam vários longos segundos. Ouço novo rugido mas nada mexe em redor, só um esquilo saltita nuns ramos acima de mim. Hesito, e acabo por dizer alto: “Monsieur l’ours, attention que je porte un fusil” (senhor urso, atenção que tenho uma espingarda).
“Estamos aqui, vem até cá”, gritava o Martin, o autor da brincadeira. Fui encontrá-lo muito sorridente sentado na margem com a Daniella e o Claude. Esfusiante, contava: “Chegámos aqui quando ainda era noite. Ao clarear vimos um grande vulto aproximar-se da água. Era um alce! Vimos um alce! Foi pena que ainda estava muito escuro para fotografar”. Em seu redor espalhavam-se manuais de aves e de mamíferos, binóculo, máquina fotográfica, rolos e objetivas. “Ouviste um lobo a uivar durante a noite?”, pergunta-me. “Não, estava a dormir. Tenho a certeza de que foi alguém para te assustar” respondi. “Não, não, era mesmo um lobo! Eu conheço-os.”
Nesse dia o rio desembocou no lago Deschène e tivemos o prazer de apreciar um largo panorama dos montes em redor. As canoas vogavam distanciadas umas das outras revelando a aplicação e a disciplina de cada tripulação. A brisa pelas costas criava pequenas vagas que nos auxiliavam. Mais uma vez o Martin tinha de fazer-se notado: a canoa mais atrasada tinha içado à proa um duplo teto de tenda que insuflava com dificuldade. Ele e o Michel iriam revelar-se os mais preguiçosos remadores de todo o grupo. De quando em vez fazíamos pausas para descanso. As embarcações juntavam-se e as garrafas de sumo de laranja e os chocolates circulavam. Mais uma vez me surpreendeu constatar que os canadianos bebiam a água do lago com confiança, sem a tratarem. “Podes beber à vontade”, dizia-me a Liz, esposa do Gérald. “Toda a gente bebe. E que poluição esperas tu encontrar aqui ?” Estávamos numa dessas pausas no meio do lago quando alguém detetou um alce a nadar. Embora longe, ficámos todos a observá-lo com enorme interesse até que ele subiu a margem e desapareceu no arvoredo.
Normalmente remávamos duas horas de manhã e outras duas à tarde. A corrente e a brisa a nosso favor permitia-nos avançar de 25 a 30 km por dia. As pirogas de oito metros eram desenhadas pelo Gérald que se gabava de não conhecer outras desta dimensão que fossem tão rápidas. Professor de educação física, desde há longos anos que era apaixonado pela canoagem, tendo sido atleta olímpico. “Uma vez organizámos uma expedição nos Territórios do Noroeste que durou 180 dias. Sabes o que são 180 dias ?!”, perguntava-me com a sua voz enérgica. “Éramos cinco pirogas e tínhamos apoio exterior, mas passámos o inferno. Apanhámos tanto mau tempo e condições adversas que não quero voltar a repetir. L’enfer!”. Hoje, com 59 anos conserva um porte atlético invejável e gaba-se das suas 28 maratonas já corridas. “Passo o Inverno a treinar corrida e ski de fundo e participo em duas ou três maratonas por ano. Quando era jovem havias de ver os meus bíceps, e os abdominais, parecia que tinha bananas na barriga”, dizia-me com a sua típica ingenuidade.
Nas etapas seguintes o rio mantinha-se estreito e o contacto com a Natureza era muito acolhedor pois observávamos facilmente o que se passava nas duas margens. A presença dos castores era constante, não por que os víssemos com frequência, mas pelos inúmeros vestígios que encontrávamos: pequenos diques e árvores roídas. A região é muito rica em aves lacustres e terrestres entre as quais vimos esvoaçar inúmeros patos, gansos, mergulhões e águias pescadoras. Atravessámos mais lagos, alguns com ilhotas e rochedos no meio, e surpreendia-me constatar a imensidão impressionante destas massas de água que fluem lentamente do Labrador para o golfo de São Lourenço, autênticos reservatórios inesgotáveis. Por razões de conservação, tinha sido proibido pelo Governo, há uns vinte anos, o transporte de madeira nos rios. A madeira era cortada e lançada à água. Depois vogava dezenas ou centenas de quilómetros ao sabor da corrente para sul onde seria pescada. Ainda hoje há centenas de cepos que vogam nestas águas e jazem nas margens, com as extremidades perfeitamente arredondadas.”Esta medida foi muito contestada pois encareceu imenso o custo do transporte da madeira”, dizia-me a Marie Helène, estudante em Montréal. “Mas as autoridades consideraram, e bem, que uma boa parte destes troncos ficavam presos em rochas submersas e entulhavam várias secções do rio, sobretudo os rápidos e os troços em que o leito estreita. O peixe começou a ter enorme dificuldade em subir os rios”.
Passámos por raras cabanas de caçadores, construídas de madeira na margem, algumas em locais perfeitamente idílicos. Muitas tinham instalado o característico reboque para o barco, que servia somente para o içar em seco alguns metros sobre uma rampa de madeira. É óbvio que os seus proprietários tinham de aqui chegar de hidroavião, um meio de transporte indispensável na região. A nossa agradável odisseia prosseguia com a descoberta de novas paisagens e recantos de rio encantadores. O que mais me fascinava era o sentimento genuíno de sermos as únicas pessoas muitas milhas em redor. Não podia deixar de sentir um enorme júbilo por beneficiar de tamanho privilégio.
A exceção foi o velhote que encontrámos no quinto dia à pesca num bote, defronte da sua cabana. Ficámos um pouco desiludidos pois ignorou-nos por completo. Imaginei que estaria indignado com a sorte por lhe aparecer este grupo a perturbar a santidade da sua solidão.
A certa altura passámos uma zona de majestosas falésias rochosas que mergulhavam a pique nas águas límpidas. O arvoredo crescia da mais pequena fenda ou falha na rocha, oferecendo uma fascinante combinação de cor e um interessante contraste de consistências. A imponência destes vultos impunha respeito. As canoas deslizavam sob as paredes maciças e era difícil concentrar-nos a remar perante tamanha imponência.
Nessa manhã fizemos uma pausa junto de umas cascatas. Não havia possibilidade de desembarcarmos e ficámos a admirá-las a jorrar com ruído para o rio. Acima da margem havia extensões de musgo verde e vermelho que era muito espesso e tinha a altura de relva.
O sétimo dia de expedição foi dedicado ao repouso numa belíssima praia envolvida pela floresta. Aliás, todos os acampamentos seriam sempre em praias, sendo difícil eleger a mais bonita. Após um pequeno almoço tardio, metade do grupo partiu em excursão. Uns levavam canas de pesca pois o Gérald disse-nos que nas proximidades havia uns rápidos onde se pescava excelente truta no meio do arvoredo. Continuei com os suíços, os únicos ávidos caminheiros do grupo, para fazermos a ascensão de um monte. Sentíamo-nos uns autênticos exploradores a desbravar o mato virgem que nos dificultava a passagem. Chegados ao cimo, trepámos os últimos rochedos e sentámo-nos a apreciar a vasta paisagem em redor, com a roupa coberta de inúmeros pedaços vegetais. O esplêndido panorama deixava-nos pasmados com a imensidão de floresta a perder de vista. Distinguíamos alguns lagos em depressões e o curso do rio Toulnoustuc serpenteando placidamente.
O Martin era incapaz de conter a sua excitação e não parava de exclamar a sua surpresa pela beleza daquela magnífica Natureza. A Thèrese protestava: “Ó Martin, tu que és tão naturalista, fazes mais barulho do que todos nós juntos. Queres observar animais selvagens mas espanta-los à distância !” O Martin conseguiu convencer a custo o Michel para continuarem o passeio. Regressámos ao acampamento para tomarmos um bom banho e nos estendermos na praia.
A meio da tarde aparece o Laurent, um funcionário público quarentão que trabalha na cidade de Québec. Tinha ido passear sozinho e parecia perturbado. “Fui dar uma volta ali por cima e apareceu-me um animal. Era grande e escuro. Não consegui perceber o que era através do arvoredo, mas era muito grande”, e descrevia com os braços a dimensão do animal. “Era um elefante negro ?”, ironizou alguém. “Viste um rochedo coberto de musgo escuro”, disse o Christophe. “Não, não, ele mexeu ! Tive pouco tempo para o observar por que só quis escapulir-me”.
Ao fim da tarde, já o jantar estava a ser cozinhado, aparece o Martin com uma expressão orgulhosa e triunfal. “Vejam o que encontrei”, e mostrava em cada mão fezes enroladas em folhas. Ouviu-se uma gargalhada geral.
“Esta é de lince que eu conheço bem, e esta… tem de ser de urso!”
Durante toda a expedição os jantares seriam sempre dos períodos mais calorosos do dia. Todos se reuniam descontraidamente em redor das duas fogueiras vigiando o jantar ou a roupa a secar. Conversava-se animadamente sobre as peripécias do dia enquanto o pescado grelhava sobre as brasas. Às vezes, os monitores desencantavam umas garrafas de forte cerveja canadiana que passavam de mão em mão. O fogo unia as pessoas e dava-lhes uma maior predisposição para o convívio, ou induzia à melancolia meditando-se fixamente sobre as brasas. A noite ia caíndo e com ela a mais absoluta tranquilidade.
O importante era que ninguém tinha vivido indiferente em qualquer momento da expedição. A imersão nesta fantástica Natureza tínha-nos sempre inspirado.
Embora não tivéssemos visto um urso ou um lince, todos partimos com a nostalgia de termos vivido momentos memoráveis naqueles imensos espaços de liberdade.
Este é o relato da minha participação em Agosto de 95 na expedição no rio Toulnustouc. A viagem de Rotas do Vento Grande Raide no Québec oferece exatamente a mesma paisagem e o mesmo tipo de sensações.
Gonçalo Velez