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Rotas do Vento

Tunísia: Dunas e Oásis do Grande Sul – Raquel Ribeiro

Areias Movediças

“Escolhe a vida” – foi o mandamento que o deserto me inscreveu. É Sexta-Feira Santa num país do Islão. Encontro o oásis, mergulho na água, escuto o delírio dos pássaros no tremeluzir do sol entre as palmeiras. Amanhã estarei de volta à cidade, e depois disso, à minha cidade no meu país.

O deserto

O deserto é um país à parte. Sentir o gosto do deserto não é uma força de expressão. Ao fim de poucos minutos, a areia entranha-se por todo o lado – trinca-se, respira-se e esfrega-se. Rapidamente se desiste.
Eu conto-vos o que foi o meu primeiro dia no deserto.

Vínhamos de Tunis de avião para Djerba, apelidada “La Douce”, e no programa falava-se de uma noite num hotel de charme em Houmt Souk , o que deixaria espaço para um dia de preguiça, devaneio e sol… após o que, na manhã seguinte, se rumaria à grande aventura.

Chegámos ao aeroporto, e um rapaz de semblante ocidental, olhos claros e francês velocíssimo explicou o que seria o itinerário. Por algum motivo que atribuí ao desencontro do meu francês com o dele, quis-me parecer que ele disse que iríamos caminhar “hoje” umas 5 horas. Conhecendo o perímetro da ilha, deu-me para rir! “Engraçadinho”, pensei.

Entrámos numa carrinha com dois senhores tisnados de ar pachorrento e chegámos, após uma boa distância, ao porto do ferry, onde esperámos para atravessar.

“Ia jurar que tinha lido que o aeroporto era na própria ilha”, estranhei para comigo. A água ali era lisa, melancólica, e cheirava fortemente a iodo, a sal, a uma Primavera fresca e apelativa.

Posto isto, seguimos, por entre olivais imensos e estepes áridas, até começarmos a avistar montanhas (?) e placas a indicar a fronteira com a Líbia, a cerca de 300 kms.

Achei muito estranho que a ilha fosse tão grande, que tivesse montanhas (que ainda tentei vislumbrar como o relevo da costa continental), que houvesse indicações sobre uma fronteira, que tivéssemos andado de ferry, e que… e aí, tudo reunido no pensamento como areia em turbilhão na tempestade, dei um salto!

Inclinei-me para o banco da frente e exclamei: “Vamos já hoje para o deserto?!”.

E o condutor, risonho e calmo, disse que sim…

Pensei desconexamente na mala que ainda estava por separar, no último banho da dignidade que eu nem tivera tempo de tomar (para os próximos 7 dias!) e que, enfim, aquela impaciência que eu andava a sentir pela aventura não precisava de ser correspondida tão depressa. Mas agora não havia retorno.

Após a visita às casas trogloditas de Matmata, onde foi filmada a “Guerra das Estrelas” e onde agora se vê hotéis repletos de turistas e sinais de abastecimento de água e eletricidade públicas, dirigimo-nos a Douz, onde almoçámos sem mais ver da cidade que a agência, o restaurante e a loja que nos vendeu os “cheches” azuis.

Abandonámos a “Porta do Deserto”, o último oásis, em direção às dunas.

Lembro-me muito bem do que senti nesse momento.

Ia maravilhada com os palmeirais e as poças de água que encharcavam o chão, no meio daquela paisagem tão árida. Por uns segundos baixei os olhos para a ver qualquer coisa na mochila e quando os reergui, admito que engoli em seco.

O verde eclipsara-se por completo, e no horizonte via-se apenas um mar de areia e uns pequenos tufos secos. Como se uma rajada de vento tivesse arrastado um cenário de papelão e nada mais restasse senão o primitivo vazio.

Suponho que fosse aquilo o que se possa chamar a solidão do deserto. O jipe seguia em frente sobre uma pista que não existia, a deslizar na areia como uma cobra trôpega. Quando o que via em frente me parecia impossível de superar sem que o jipe se virasse ao contrário, eu olhava para o lado. Conduzir assim fez-me ter uma consciência absolutamente diferente daquilo que eu pudesse antes considerar como estômago.

Andámos assim umas largas dezenas de quilómetros (acho).

Espantosamente, a paisagem ia mudando, com uma subtileza que os olhos antes não haviam podido discernir, habituados que estavam à sobrepovoação de quinquilharias no quotidiano visual.

Primeiro, a areia era cor de salmão suave, matizada nas arestas com um branco perlado, como renda concêntrica. Depois alaranjava-se, e as poucas ervas tornavam-se longas e afiladas. A seguir, a areia deixava de estar disposta por camadas e arredondava-se em meias luas isoladas. E por vezes havia línguas de pura pedra entre a areia.

Por fim, chegámos. Um quase-velho e um já-não-rapaz esperavam-nos, sentados numa manta, com o bule de chá a ferver aos pés. Trocámos umas palavras afáveis e depois soubemos que não iríamos caminhar hoje, porque eram quase 17h. Ao longe, retoçavam 5 dromedários.

Quando o condutor terminou finalmente a conversa que, à semelhança de todas as conversas em árabe, parecia brotar da coisa mais insignificante e ser inesgotável até que motivo de força maior a interrompa, foi-se embora e ali ficámos…nós, os nossos guardiões e o deserto. Longo suspiro prolongado.

Após uns minutos sentados a absorver a sensação e o chá agridoce, soubemos que as nossas tarefas seriam ajudar a apanhar lenha e a reunir os dromedários. Sublinhe-se que o entusiasmo que nos suscitaram no primeiro dia, pela fresca, nada teria a ver com a experiência de o fazer sob o sol de rachar do meio-dia – e seriam uns tantos meios-dias dali para a frente.

Apanhar lenha ali não era difícil, porque aqueles arbustos aparentemente insignificantes, que apareciam a intervalos de alguns metros, tinham uns quantos galhos secos bastante prestáveis.

Quanto aos dromedários, a situação era um pouco desleal, na medida em que se lhes amarrava lassamente as patas da frente para que não se afastassem (não digo “muito” porque, mesmo assim, eles arrastavam-se teimosamente até aos confins, de tal modo que em cada manhã era preciso ir procurá-los, mas pelo menos muito depressa).

Os doravante designados camelos tinham uns olhos fascinantes, de constante escrutínio e resignação face ao que os rodeava. O nosso guia Yussef tinha uma forma perfeitamente empática de lidar com eles; jamais o vi ser tão impaciente que ultrapassasse o simples elevar de voz, soltando uma imprecação áspera (e ainda assim era preciso que um deles estivesse a morder no outro). De resto, obedeciam ao “khrrrrrrrrr” para deitar e ao “ksssssss” para levantar, e deu-me até a impressão de que iam para a esquerda ou para a direita conforme os mandassem.

Fazer o pão e o jantar foi a tarefa seguinte.

O pão no deserto faz-se…com areia. Amassa-se uma bola que depois se achata até ficar um círculo, e depois deita-se em cima de umas brasas que entretanto se formaram da fogueira que se tinha ateado. Tapa-se com mais brasas e com a areia escaldante que ficou sob o lume. Espera-se, espera-se, e ao fim de uns largos minutos, saliva-se a visualizar o azeite a escorrer levemente sobre a massa a escaldar, direitinho à boca, e no fim desta penosa tortura da imaginação bate-se no amontoado com um pau, até que o som revele que está “no ponto”. Sacode-se a areia do pão, e a que nele fica não se sente porque é finíssima. É um manjar. Molha-se em azeite e saboreia-se ainda quente. Um pedaço de vida.

O jantar consiste em sopa e guisado, com legumes e muito tomate. A carne é de borrego. Será a mesma carne do mesmo borrego nas próximas noites, e aguentará 5 dias até ficar intragável ao nosso palato de humanos de estufa. Avaliando os dias de sol em que andou ao lombo do camelo, embrulhada em papel de jornal, não é fraco feito.

O chá do deserto tem que ser suavizado para os europeus. Só para se ter uma ideia, um pacote grande de chá verde dá para uma ou duas vezes, o que explica a espessura e a agrura do líquido, afogado em largas colheres de açúcar que fazem os dedos ficar presos ao copo.

A areia, mormente seja uma tirana, é também um poço de utilidades variadas. Serve nomeadamente, para além de fazer pão, para lavar a louça: coloca-se um pouco de areia sobre o prato engordurado, esfrega-se bem até saírem os primeiros coágulos e depois passa-se por mais areia e seca-se o resto; sacode-se bem e está pronto.

Nessa primeira noite, não houve grande mística. Não fazia frio e não se montou tenda (o que viríamos a perceber ser uma grande trabalheira poupada). O horizonte estava nublado, não houve pôr-do-sol apoteótico. Adormeceu-se simplesmente, sob as nuvens.

Mas quando acordei a meio da noite, tinha o meu pequeno milagre: o céu carregado de estrelas e lua. O peito inchou-me de alegria e expectativa.

De manhã, acordou-se com o sol, que era mais rápido do que as horas. O acampamento começava a mexer-se devagar – a fogueira ateada com a lenha que sobrara da véspera, o guia que se levantava e ia à procura dos camelos (não se avistava nenhum!), o rapaz que ia fazendo o chá e o pão.

Comeu-se, carregou-se os camelos (tarefa bastante complexa e demorada, dada a imensidão de jerricans de água, entre outras coisas, que eles transportavam) e partiu-se.

E todos os dias era assim, e todos os dias seria assim.

A partir daí, era seguir ou ladear a caravana, primeiro através de longas planuras, não raro com chão de pedra e gravilha, amigas de uma passada sem esforço, e depois, à medida que íamos progredindo, sobre dunas de areia cada vez mais altas e recortadas.

Parar para almoçar perto do meio dia, quando o sol decidisse estar a pique; encontrar uma nesga de sombra agonizante; desaparelhar os camelos; arquejar e sufocar de calor à procura de lenha; comer uma salada de legumes crus e cozidos com um pouco de atum; enxotar as moscas a zumbir, modorrentas; dormir um pouco.

E depois continuar, cada qual imerso em pensamentos, os homens do deserto a cantar melancolicamente, nós de cenho franzido pela agressão solar, prosseguindo para destino incerto (para o guia havia sempre um arbusto ou uma elevação lá longe que faziam sentido como bússolas). Isto até que o sol estivesse a uma hora de se pôr. Repetir tudo sobre os camelos e a lenha, mas com a promessa de jantar melhorado.

Eu aproveitava a primeira penumbra para me lavar atrás de uma duna, fazendo render menos que um litro de água para me sentir novamente um ser humano, e trocar de roupa. Sinto que, paradoxalmente, com o passar dos dias, os confortos e as vaidades não perdem sentido, reabilitam-se. Pelo apego à vida.

Jantava-se, dormia-se e no outro dia avançava-se invisivelmente mais algumas dunas.

E assim a paisagem ia mudando, da quase-planície pontilhada de arbustos, às camadas douradas de areia pura, de quando em longe avistando-se altas mesetas muito ao fundo, numa distância que era para nós imponderável.

Mas não se olhava muito em frente, olhava-se sobretudo para o chão.

No deserto não há aparentemente grandes surpresas. Mas tentar adivinhar se a passada seguinte cairá em areia dura, firme, que poupa os joelhos e os músculos, ou pelo contrário, em areia mole, fofa e fugidia, onde nos afundamos até aos joelhos, torna-se um exercício mental constante e absorvente. Há uma coisa que é certa: olhando para o nosso guia, ele pisa sempre areia dura. Não sabemos como adivinha. Se tivermos a veleidade de pisar uns centímetros ao lado, é certo e sabido – enterramo-nos. E passada após passada, concentramo-nos na expectativa do tantalismo interminável.

Cuidado com essa ideia das poucas surpresas. No deserto não se está só.

Quando menos se espera, aparece um visitante inesperado, surgido do impossível, para almoçar.

Num meio-dia inclemente, sob o único arbusto no meio de areia total, vimos aparecer a correr, descalço, com uma garrafa de litro vazia na mão, um sujeito esgalgado e esganiçado. Era um pastor que estava de regresso ao seu acampamento. Nós chegaríamos lá ao fim de 4 dias; ele ao fim dessa tarde. Tinha uma voz estranhíssima, que mudava sem aviso de um timbre masculino regular para um falsete alarmante, descompassado, que não pudemos evitar comparar ao balir das cabras.

Cuidado ainda com o que se pisa. A areia é um ente vivo. Debruçamo-nos um pouco e vemos mil e um sinais. Pequenas patinhas desenham tatuagens complicadas e maravilhosas na areia finíssima. Ora o escaravelho, ora a aranha, ora o inseto, ora a lebre, ora os pássaros. Fazem renda na areia. Desenhos maravilhosos como se os seus autores estivessem tomados de um psicadelismo tresloucado.

Cuidado também com o que se diz – ou com o que se ouve. Quando repliquei ao guia Yussef pela primeira vez com alguns vocábulos do meu parco árabe, ele ficou tão entusiasmado que a partir daí criou o ritual de me mandar contar os camelos todas as manhãs: “wahid, ithnin, thalata, arba´a, hamsa”. E depois, apontava qualquer coisa para que eu dissesse o que era. O céu. A lua. O sol. A areia. As árvores. Os pássaros. Eu correspondia como sabia. Para ele era um espanto e para mim, um deleite, poder quase-falar assim.

Mas cedo percebemos que tínhamos perdido o nosso descanso. Ele deixou de poder falar livremente com o colega Kamal; por vezes suspendia o diálogo para me olhar disfarçadamente, porque não sabia a real extensão do meu saber. E eu, que sabia pouco, dedicava-me de facto, inconscientemente, a atentar nas duas vozes, identificando de quando em vez alguma sonoridade conhecida. E pelo incómodo dele, comecei também a ficar incomodada e a prestar, por desconfiança, uma atenção reforçada ao que ouvia. A alegria de aprender uma língua só tem paralelo no tremendo fardo que representa, por não se poder fugir dela. Apercebo-me disso nos aeroportos: quanto mais línguas sei, menos paz tenho. Não consigo evitar ouvir, e os caracteres entram-me pelos olhos dentro e são processados em segundos.

É tarde demais para me remeter ao meu silêncio interior, ao descanso de nada saber. E com o árabe também já estava a ser um pouco assim. (De resto, é uma língua que amo, pela dolência, pelo arquejar, pelos sons aspirados e expirados numa evocação de lamento, fatalismo e resistência. É uma língua bela, concebida para ser pensada de forma bela. Percebe-se a sua ligação ao deserto – o redemoinhar surdo da areia, a secura dos cascos no solo, o arfar da sede, e até o linguajar dos camelos, tudo nele me lembra a sonoridade do árabe. Ora rasgado, raspado, áspero, estalado, ora suave, doce, harmonioso e redentor.)

Cuidado com os camelos. Eu gosto de camelos, mas blateram até ao insuportável se contrariados. Têm muito mau feitio. E sobretudo, não vão a caminhar logo atrás deles – o cheiro dos camelos é talvez o único rasto fiável no meio do deserto. Mas que outra coisa seria de esperar de um animal que sofre com tamanha dignidade e ainda assim mantém aqueles olhos meigos e inteligentes?

Cuidado, acima de tudo, com os nossos próprios fantasmas. No deserto, eles multiplicam-se, crescem, assombram-nos e zombam de nós.

Numa das noites, deitámo-nos não muito tempo depois do jantar. No deserto pouco interessa que horas são – se é noite, ficar acordado só depende do nosso troar de pensamentos sob o esmagamento das estrelas, ou da vontade de conversar. Naquela noite deitámo-nos cedo. O guia e o acompanhante disseram que iam procurar os camelos e afastaram-se. Ficou a fogueira a crocitar, e um silêncio primeiro repousante, depois inquietante, e por fim demoníaco. O Tino começou a perguntar em voz baixa se eu não achava estranho terem ido atrás dos camelos na direção oposta onde ele vira os camelos pela última vez. Se não teriam antes ido ter com alguém. Talvez com o sujeito da voz esganiçada que encontráramos à hora de almoço e que (dizia ele) bem olhara para as nossas máquinas. E se dali a um bocado não estaríamos a ser assaltados por uns bandidos do deserto. Ali ninguém sabia de nós, ninguém poderia culpar o guia por terem aparecido uns malfeitores no meio da areia. E que talvez eu não devesse andar por aí a falar em árabe porque me tornava uma tonta turista europeia pálida mais credenciada. etc.

O que no início me pareceu um perfeito absurdo – porque pessoas do deserto que andam a guiar turistas não roubam turistas; de certeza houvera centenas de máquinas bem mais interessantes que as nossas antes; se o desgraçado do guardador de cabras fosse ladrão de equipamento japonês não precisava de andar a escaldar os pés por ali; a Tunísia tinha o deserto mais policiado e monitorizado do Norte de África, etc. – rapidamente me sufocou ao som daquele silêncio, onde o crepitar dos tufos secos já parecia soar a passos, e o piar melancólico da coruja já soava a vozes (por sorte, ainda eu não tivera uma conversa com alguém que sabia de um grupo que estivera em Marrocos de jipe e quase lá ficou quando apareceram uns tipos que levaram os carros, e quase levaram as mulheres). Acho que até ligámos os telemóveis e os apontámos estupidamente para as estrelas, só para constatar a nossa absoluta lonjura de tudo o que fosse vivente e não tivesse quatro patas. Obviamente, nada aconteceu. Apenas uma corrida estafeta de fantasmas.

Quase no final da viagem, chegámos ao entardecer ao ponto mais emocionante: um poço!

Mas não era um poço pacato e perdido no meio da areia – era um grito de contraste, uma enorme festa coletiva. Nómadas de toda a circunferência à volta daquele milagre tinham vindo trazer os rebanhos de cabras, e as cáfilas de camelos. Era uma confusão indescritível de animais a correr, a tresmalharem-se, a morderem-se, a desesperar pelas gotas de água; havia homens na conversa, crianças a brincar e duas ou três mulheres novas, desgrenhadas mas bonitas, a lavar roupa.

Toda aquela planície estava, quando chegámos, juncada de gente, bicharada de quatro patas e moscas; a areia estava completamente atapetada de caganitas, numa extensão que a fazia parecer negra.

Quando chegou a vez de os nossos camelos beberem, já quase não havia água. O poço precisava de dormir e recompor as líquidas entranhas. A ideia de poder tomar um banho de balde…fora uma miragem.

Enquanto o sol se punha, toda aquela algaraviada desertou. Um cabritinho perdera-se do seu rebanho e balia desalmadamente. Peguei nele ao colo – tão trémulo! Depois entregámo-lo a uma miúda de outra família que ficara até mais tarde.

A partir do momento em que se vê água, nem que seja naqueles poucos haustos que é o tempo de os baldes subirem e serem despejados nos bebedouros, fica-se inquieto. E encontrar o oásis, no dia seguinte, ficar horas quieto na água ferrosa da piscina natural, que merece o desdém dos turistas alojados nos lodges luxuosos adjacentes porque não passaram um único dia sem água a jorrar na torneira, é uma necessidade, é um alívio.

Sei que vou gostar de ver chover, quando regressar. Que vou gostar de sentir chover o resto da minha vida.

O resto

O resto da Tunísia é para mim vago, indistinto e um pouco antipático até.
A capital é orgulhosa demais, as pessoas são arrogantes demais, e de modo nenhum achei que fosse aquele um Magrebe dourado e esclarecido. Há desleixo, sujidade e má-fé por todo o lado, exceto no país à parte – o deserto e as montanhas do sul.

Podemos andar na medina de Tunis e transplantarmo-nos mentalmente para Marraquexe ou para o Cairo, é certo. Ou visitar o belo Museu do Bardo e respirar um pouco de harmonia. Mas tentamos ver Cartago e esse sonho esvai-se. É demasiado confrangedor, todo aquele abandono. Eu não sou uma simpatizante do passado per si; interesso-me por ruínas se a vida local, que pulsa contemporaneamente, me cativar. Não é o caso.

Apenas uma assombrosa Dougga ou uma tímida, mas digna, Thuburbo Majus me consolam. São restos de cidades romanas imponentes, meritórios. Em Dougga temos a sorte de chegar bem cedo e em terminar a visita no exato momento em que nos iriam obrigar a sair, por ter chegado um figurão americano importante cheio de seguranças à volta.

Em Thuburbo Majus, hesitamos em requisitar como guia um homem esguio de dentes negros, mas quando acedemos sentimo-nos compensados. O homem parece ter um conhecimento muito decente daquela história, tem sentido de humor, é humilde. Depois conta-nos que foi emigrante em França e que conheceu muitos portugueses. Gostamos dele. Ainda bem que ele estava ali para, à revelia do Estado Tunisino que assim despreza os seus monumentos, no-los iluminar devidamente.

Nesse dia estamos entregues ao taxista cujos serviços alugámos para o dia inteiro, a preço nada leve. Não simpatizamos com o homem, que oscila entre o melífluo e o escarninho, aquele tipo de pessoa que é respeitoso por obrigação e não por vocação, que sentiríamos que se viraria a nós caso o equilíbrio de poderes mudasse abruptamente.

Mas da Tunísia verde, guardo ainda assim duas recordações ternas.

Uma, a desse dia das ruínas romanas, quando chegada a hora de almoçar, paramos num estanco de berma da estrada. Um carneiro morto está pendurado ao ar livre, coberto de moscas. Manda-se pesar a quantidade que se acha razoável e grelhar ali mesmo. Nada de frigoríficos nem de assepsias.

É saboroso. No rádio do carro, nesse momento, passa o hit mais recente da globalização: “Galvanize”. Os requebros árabes misturados com a batida eletrónica fazem-me sorrir, naquela aldeola perdida. It´s a small world.

Outra, a do dia do regresso. Passeávamos pela Medina de Tunis enquanto não se fazia hora de apanharmos o voo seguinte, que seria o penúltimo do regresso a casa, e decidimos enveredar por ruas que ainda não conhecíamos. Subitamente deparamo-nos com um reboliço discreto de negros em trajes aprumados – elas com os vestidos garridos e os panos enlaçados na cabeça no seu melhor esplendor, eles de fato. Alguns brancos também, ocidentais louros. Estavam a entrar para uma igreja. Seria uma festa? Aproximamo-nos, e somos calorosamente convidados a entrar. Era uma missa ao ar livre, com cantos gospel, e aqueles discursos religiosos inflamados que pareciam discursos políticos. Os organizadores procuram-nos cadeiras, com um sorriso. As crianças estão radiantes, as mães sorriem de bonomia.

Era domingo de Páscoa, no mundo como em Tunis. Tínhamo-nos esquecido. Uma parte das nossas tradições, uma parte da cristandade que não a nossa, e uma parte do islamismo entrelaçaram-se magicamente naquela combinação de dois portugueses sentados numa missa gospel cantada em inglês na medina de Tunis. Delicio-me com as músicas, é Primavera, os pássaros chilreiam. Sinto-me em paz.

Parámos em Casablanca no voo de regresso e, ao espreitarmos a cidade num par de horas, confortei-me a sentir que tinha razão: os marroquinos estão a anos-luz dos tunisinos em simpatia e educação. São desinteressados, afáveis e verdadeiros.

Andar naquela medina, a autêntica, a não turística, mete medo. É minotáurica, retorcida e inclemente. Mas agradeci o prazer de sentir esse medo. De ser uma estranha no meio de um povo que ainda sabe o que é. É um povo bom.

Raquel Ribeiro, 2005

Relato de viagem à Tunísia, 17 a 27 de Março de 2005