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Rotas do Vento

Brasil: Longos Areais do Nordeste – Anabela Mendes

Esta viagem foi escolhida com a intenção de reparar um ano muito trabalhoso e difícil. Escolhi areia e oceano exatamente com essa função. E correu tudo muito bem. Paisagem aberta, nativos no seu quotidiano, pouca ou quase nenhuma gente de fora.
Como me agradou quase tudo, o que ficou de fora do quase tudo reporta-se apenas e tão só aos efeitos de seca severa nos últimos tês anos que diminuíram drasticamente o caudal das lagoas visitadas e que são anunciadas nos prospetos turísticos como uma beleza paradisíaca e única. Água pelo tornozelo é uma tristeza.
Neste caso a espectativa teria tido um grande impacto. A Natureza não deixou. Será que o ser humano também não?
Em alguns poucos lugares não gostei de ser confrontada com edifícios gigantescos e deslocados na paisagem ou a já dela tomarem conta: Fortaleza e Jericocoara. Farei mais adiante referência aos efeitos do turismo de massas e à ganância pelo lucro fácil que assassinam as belezas naturais.

Debati-me até ao início da viagem se deveria levar botas de caminhada ou não. Acabei por as levar e de nada me terem servido. A mala ficou mais pesada, tendo carregado dois trambolhos sem necessidade. A intenção era proteger os pés do calor durante a subida e descida de dunas. Acabei por perceber que era descalça que eu deveria fazer esses trajectos, como aliás os fiz. Nem a areia estava quente de mais nem o afundamento dos pés justificava qualquer calçado. Não perguntei ao Gonçalo nada sobre este assunto. Talvez o devesse ter feito. Os boletins informativos aconselhavam esse tipo de calçado. Interroguei uma autóctone de S. Luís do Maranhão, minha actual doutoranda, sobre este aspecto. Peremptória a senhora insistiu nas botas. Acabei a perceber que a dita senhora nunca visitara nem os pequenos Lençóis, nem os Grandes, nem sequer as Fronhas…
É aqui que exponho o desagrado perante a fealdade de Fortaleza. Felizmente que só dormi aí uma noite. O Hotel Villa Mayor, um edifício com história e adequado às necessidades básicas dos hóspedes, encontra-se encafuado no meio de uma série de edifícios de muitos andares, incaracterísticos e que parecem precipitar-se sobre a delicada e antiga estrutura hoteleira. Olhar na direcção do céu é um destroço. Toda a cidade sofre deste problema e de bom grado teria evitado conhecê-la. Aliás, ao sobrevoar outras cidades brasileiras fiquei com a ideia de que os malefícios do progresso têm grande receptividade entre a população do Brasil. Talvez nem todos pensem assim mas à vista desarmada dá a sensação de que o betão e o asfalto mal amanhado dão mais solidez à vida do dia a dia do que as habitações feitas de troncos e caules de árvores.
Já o caso de Jericocoara é diferente. Sempre que referia aos motoristas que iria para Atins antes de chegar a S. Luís, eles eram unânimes em dizer: «Vai para um sítio bom. Jericocoara foi assim mas há mais de vinte anos.» E de facto, tendo ficado confortavelmente alojada e próximo do mar em Jericocoara, preferi descansar nadando na piscina da Pousada Windjeri. As duas noites passadas em Jericocoara permitiram um passeio a pé na praia, entre bugies, jeeps, motas, cavalos, pessoas e algumas algas.
Alimentei-me bem em pequenos restaurantes populares, e isso eu tenho de dizer, porque assim aconteceu. Dei também umas voltas pela pracinha em torno da qual tudo gira, e suas laterais, com o piso em areia para preservar as origens… não vão o asfalto e o betão dar cabo do que resta da paisagem natural.
Já bastam as correrias das quatro rodas pela areia da praia e pelas dunas a criar frisson nos turistas que guincham a cada subida e descida mais íngreme. Aproveitei para espreitar em lojinhas (algumas mais adequadas a grandes centros urbanos do que a uma vilória pesqueira) com vendedores e vendedeiras muito atenciosos e disponíveis. Nisto os brasileiros são ases e fazem-no com grande disponibilidade. Comprei uns bonés em folha de coqueiro para os meus netos que foram trabalhados de noite para na manhã seguinte estarem prontos. O artesão cumpriu a sua palavra e ambos nos rimos com a rapidez da execução da encomenda. Peças perfeitas e muito originais.
Mas é a sede de impacto turístico que descaracteriza o lugar, mais os turistas que apreciam o folclore e até davam ar de quem se sentia ali muito bem.
Depressa fiz por esquecer Jericocoara porque o que estava por vir me atraía muito mais e não me enganei.

Viajei na companhia de uma antiga aluna de Mestrado que a mim se juntou, vinda do Rio de Janeiro. Esta presença foi muito favorável, entre muitas outras coisas, por me ter permitido escutar e distinguir o linguajar carioca e a cadência da fala nordestina. Muitas vezes me pus de lado só para ouvir os interlocutores que alargavam o seu diálogo no que os distinguia mas também no que os aproximava. Quando a minha companheira de viagem dizia «moço», mesmo que o moço fosse homem já velho, eu ria-me sempre. O que ela transmitia era carinho pessoal, gentileza, por alguém a quem queria perguntar qualquer coisa e que sempre a atendia de forma delicada.
Muitas vezes passei por mãe da Ana Beatriz e assim fiquei, embora não tivéssemos qualquer parecença física uma com a outra. Isto de ter cabelos brancos compõe o retrato, mesmo que o discurso em Português de Portugal pudesse ser uma limitação. Enfim, cada um inventa a história que quer escutar.
Num dos percursos, aquele que nos levava a Caburé, parámos na estrada a conselho do motorista. Aproximámo-nos de uma tendinha que vendia de tudo sem exceção. Foi aí que a minha companheira de viagem se inteirou do que ali estava em exposição e que ela não conhecia. A meio da tarde provámos ambas disto e daquilo. Tudo era excelente e nem se punha a questão se havia limpeza ou não no lugar. Também eu fui alvo do que para mim era novo e que o local propunha: picantes caseiros, variedade de doces, cachaças com isto e com aquilo, frutas frescas e em suco. Conseguimos escapar às loiças em barro e a artefactos que não conseguiríamos transportar. Não houve fotografias nem selfies. Tudo se passou entre nós e os vendedores que não paravam de nos fazer perguntas. É disto mesmo que eu gosto. Bendito motorista que nos fez parar no sítio certo.
Toda a viagem foi sendo feita disto e daquilo. Nunca me senti desfasada de nada. Penso que a minha companheira de trajeto também não.

Julgo necessário, de vez em quando, que se proceda à atualização da informação presente no programa de viagem. A questão da seca severa nos últimos três anos por estas paragens é uma limitação ao programa na sua globalidade. Pelo menos por quatro vezes o roteiro do dia mas também o programa geral assegurava a beleza das lagoas e o que nos esperava. Cansei-me dos banhos de semicúpio e pedi por isso alteração de programa. Fiquei um dia mais em Atins, o que muito prazer me deu, embora sem a possibilidade de troca direta em relação ao alojamento em Barreirinhas. Mesmo assim, pagando do meu bolso mais uma noite, livrei-me de ter de repetir o que já vira antes com muita tristeza.
O carácter especial desta viagem é que não tinha grupo. Estava finalmente liberta de viajar com pessoas que até poderiam ser muito simpáticas mas que eu não escolhera para companhia. A idade tem destas coisas e nunca morri de amores por conhecer gente para fazer de conta que estou acompanhada. Estivemos por nossa conta, a minha antiga mestranda e eu, a matar saudades de outras épocas de intenso trabalho mas agora sem ele. Distendidas pela paisagem e por tudo o que ela nos foi reservando, pudemos usufruir de um tempo único e regenerador. Até falámos de futuros encontros de trabalho no Rio de Janeiro, quando ela precisar de um membro de júri de fora para a banca intercalar de doutoramento. Isso não tem pressa por enquanto e exatamente por isso é que a conversa nesta área foi distendida.
Não houve distribuição de equipamento porque não era necessário. Tivemos sempre água nas deslocações terrestres e um farnel suficiente para a viagem entre Barreirinhas e S. Luís. Também este trajeto teve que se lhe dissesse. Prevista a rota para durar três horas e meia, durou o dobro. Malditas barreiras sonoras na estrada quase de cem em cem metros. O desgraçado do motorista chegou ao fim de língua de fora. Nós, os dez ou doze passageiros chegámos de gatas. Entendo este Brasil, embora me custe.
Sentimo-nos completamente seguras mesmo quando já ao anoitecer nos deslocámos, por exemplo, a um restaurante de praia, onde antes havíamos combinado a refeição do jantar. Fomos pela praia durante alguns quilómetros. Jantámos principescamente peixe-serra apanhado durante a tarde. O dono do restaurante fez questão de nos acompanhar de volta com lanterna, enquanto nos contava a sua história e as dos seus vizinhos pescadores e de como o lugar à beira mar nascera. Isto passou-se em Atins, o mais invulgar e belo espaço em que nos recolhemos.

A alimentação foi, como referi já, sempre extraordinária. A opção por peixe, frutas e saladas teve o mérito de nos satisfazer a cada passo. É claro que nunca rejeitámos o arroz branco ou de feijão, a farofa, o feijão salteado, o abacaxi refrescante. Muitas vezes bebemos a maravilhosa água de coco, o suco de caju. Bendito Brasil!
De Caburé em diante foi uma viagem incrível. O carácter especial deste itinerário, como referido, é que não tinha grupo. Uma verdadeira libertação.
A questão da cultura nativa não faz grande sentido no caso desta região do Brasil, embora o Ceará e Piauí tenham muitas etnias ainda e que nunca estudei. A mescla é o que domina. No entanto, é verdade que há rostos que nos surpreendem porque neles trazem estampada a sua ancestralidade. É o caso de se olhar para uma cara e perceber que os olhos pequenos incrustados em pele amarelada com cabelos escorridos e negros não é certamente uma marca europeia. Só consegui chegar a este nível.

Nos ditos lençóis, que mais não são do que areia do deserto do Saara transportada há séculos pelos ventos sobre o oceano, anicham-se formas abstratas sobre muitos quilómetros quadrados no norte do Brasil e muito antes do Amazonas. De certo modo, os lençóis são o que resta de uma ligação de milhões de anos a que se chamou Gondwana. Quando os continentes se separaram, a fratura africana autonomizada do que hoje é a América do Sul, deixou para sempre um rasto que invoca a antiga existência desse espaço total. O deserto do Saara parece não se conformar com essa separação. E por isso se lança grão a grão na direção do ocidente. Esta zona do Brasil (toda a costa atlântica desde Natal até São Luís do Maranhão) reflete geologicamente o inseparável ainda que sob modificação.
O nome lençol tem outra origem bem mais bizarra. No princípio dos anos 80 a Petrobrás começou a fazer perfurações nesta região. Ao sobrevoarem o território para o mapearem os técnicos depararam-se com grandes extensões de areia que faziam lembrar lençóis: os grandes, os pequenos e até as fronhas. No meio dessas dunas há lagoas originadas em água pluvial (coisa que já não acontece no Saara). Este ano e depois de três anos de seca severa como me foi dito, as lagoas, que devem ser lindíssimas quando cheias (três a cinco metros de profundidade), davam pelo tornozelo. Esta é uma região muito pobre e que tem ficado para trás desde há séculos. É daqui que vem a saga do Tira-dentes e de outros aventureiros que se perdem nos tempos de colonização francesa, holandesa e portuguesa. Como a exploração de petróleo foi barrada antes mesmo de começar, embora houvesse muito ouro negro a retirar, esse facto ficou a dever-se na altura à criação de parques naturais como forma de proteção desta paisagem única no país.
Hoje os habitantes do litoral do Ceará, Piauí e Maranhão vivem essencialmente da pesca e mais recentemente do turismo. Os desportos náuticos (windsurf, kitesurf e por aí fora) dão um ar juvenil à paisagem, mochileiros e seus apetrechos espalham-se pelas areias brancas e tonificam as águas oceânicas. Há espaço, muito espaço para todos. Alguns passeantes não passam de pontos e vírgulas.

Mantenho no horizonte a Gronelândia. Mas não prescindo de um lugar como Atins.
Não referi antes alguns aspetos menos propícios desta viagem e que me desesperaram sem que a Rotas do Vento tenha de ser diretamente envolvida neles.
O primeiro desagrado ocorreu à saída para o Brasil. No aeroporto havia greve da Prossegur e da Securitas, como a tempo fui avisada pelo Gonçalo. O voo em que deveria partir saía às 14:25. Fui para o aeroporto às 8:00, prevendo grande confusão. E essa aconteceu.
Apanhei o avião a tempo porque tinha cabelos brancos… Outros passageiros para o mesmo voo ficaram em terra. O avião saiu atrasado e a chegada a Fortaleza foi já noite adentro. Durante a espera tremenda e bloqueadora do trânsito de passageiros pela polícia de fronteiras em Lisboa não estava autorizada a ida à casa de banho nem a ingestão de alimentos fora da bicha. Quem arriscasse voltava ao princípio. O acumular de passageiros dava tantas voltas no interior do aeroporto como fora dele. Nunca vira nada assim. Viajando sozinha não tive oportunidade de satisfazer as minhas necessidades elementares até chegar ao avião.
No regresso apanhei um voo interno para Salvador como estava previsto. Não entendi porque é que entre S. Luís e Salvador decorriam 5 horas de voo. Sei ler as distâncias e não me pareceu que a viagem tivesse de demorar tanto tempo. Mas demorou. S. Luís – Teresina, Teresina – Recife, Recife – Salvador. Acho que andámos a distribuir correio ou coisa assim. Verifiquei a seguir que a vontade de ir ao centro de Salvador da Baía não só não era possível pela falta de tempo como fui informada de que o autocarro no regresso poderia demorar cerca de três horas, porque havia obras na estrada de ligação entre o aeroporto e o centro da cidade. Ficará para outra ocasião.
Regressar a Portugal demorou 28 horas e meia. Saí do hotel em S. Luís às 3:00 da manhã de 2ª feira, dia 5 de Setembro, e meti a chave à porta de casa às 6:30 da manhã de terça. É obra!!!! Nem para a Nova Zelândia foi assim tão duro.
Mas houve momentos fabulosos que me fizeram recuperar destas andanças desastrosas.
Comi carne seca ao sol, no meio do campo e com o galo a correr atrás das galinhas, alojei, entre outros, num sítio incrível: Pousada Oceano Atins, uma espécie de refúgio para o viajante e em que é possível contemplar uma mescla artística incrível e indescritível.
Escutei algumas histórias dos motoristas que me iam levando daqui para ali aos tombos por gigantescos bancos de areia, quase à beira do despenhamento, e dos condutores de balsas e voadeiras pelo delta de rio Parnaíba. Sei hoje que estive num dos três mais famosos deltas do mundo que desaguam em mar aberto: o do Parnaíba. O outro é o do rio Mekong (estive lá também faz agora dois anos) e finalmente o delta do Nilo, onde não me apanham tão cedo…
Este destino dos Longos Areais do Nordeste é absolutamente glorioso para pessoas como eu. Prometi à amada do colecionador italiano de arte, dono da Pousada Oceano Atins, que voltaria para me alojar no quarto com a tela do príncipe fardado ao estilo de Mussolini e com os olhos pintados, só trocável pela gigantesca cabana com leitos de docel, onde também dormi. Aí o vento uivava mais forte do que em outros lugares numa saudação aos muitos objetos expostos por todo o lado: um sapato bicudo de salto alto, fotografias antigas, candeeiros elétricos disfarçados de pessoas. Uma indiscritível panóplia entre o kitch e o rústico.
Desta vez quase não consegui fotografar. Verifiquei o que já me acontecera com as florestas na Costa Rica. A infotografabilidade dos objectos deriva da amplidão, da altura e da dispersão da paisagem, da desproporção entre o estar demasiado próximo do cenário a captar e o que dele é captável: fatias, meras parcelas de um todo. Sem pequena objectiva à mão, optei mesmo por desajeitadas imagens apenas para arquivo futuro. Contento-me, assim, com o que a memória me deixar recordar. Daqui a algum tempo tudo estará confuso e baralhado entre neurónios desavindos e suas sinapses.
Abraço
Anabela Mendes
12.9.2016