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Rotas do Vento

Marrocos: Berberes do Monte Toubkal – Raquel Ribeiro

Ouaneskra Oukaïmeden, 7 de Junho de 2002

Sentada numa esteira ao sol, com o riacho a soprar por sobre os limos, à volta só montanhas de flores amarelas e borboletas brancas, observo o nosso guia Hassan que se prostra a pequenos espaços enquanto faz a sua oração.

Silêncio soberbo.

Os cozinheiros remexem nos tachos, que lavam após um aparatoso buffet frio, principesco, no meio do vale tranquilo.

A nossa chegada a Marrocos, apenas ontem, já nos deixou bêbedas de beleza.
Ontem foi Marraquexe, o seu cor-de-rosa buliçoso e odorífero ao pôr-do-sol. Muito chá de menta, muitos bolinhos de amêndoa, muitos souks.
Exaustão dos sentidos. Um choque deslumbrado. Uma indignação crescente contra toda a má fama injusta com que antecipáramos este país.

Imagináramos a viagem com tons de pior possível. Era um destino que todos exclamavam inadequado para três mulheres sozinhas, e o facto de irmos passar vários dias em montanhas incomunicáveis e inóspitas com outros três muçulmanos (homens) não nos parecia o cúmulo do sossego. Era suposto ser uma viagem de grupo e afinal só nós nos tínhamos inscrito. Ainda por cima o avião até Casablanca tinha 18 lugares, o que no nosso imaginário o enquadrava na categoria de folha de cartolina com asas.

Afinal o tal avião deu-nos um voo estável e rápido, de que ficámos fãs. A consciencialização de que estávamos noutro continente e noutro mundo surgiu no aeroporto de Casablanca – a que os marroquinos chamam familiar e abreviadamente “Casa” – com a visão das concentrações de peregrinos a Meca, trajados a rigor (as mulheres na famosa burkha) de uma forma que os fazia excessivamente árabes e temíveis aos nossos olhos fragilizados.

Ainda havia que passar a burocracia anedótica e irritante do aeroporto; a falta de jeito para usar só a mão direita para comer ou entregar as coisas, seguindo o preceito muçulmano; e um segundo voo curto, mas que atrasou 2 horas por causa de um passageiro que não apareceu (o que implicou identificar bagagens na pista, sob um calor pouco auspicioso para quem começava tais andanças).

Mas assim que planámos sobre as palmeiras e o cor-de-rosa ininterrupto de Marraquexe começámos a amá-la sem hesitação. Pelos vidros do jipe que rolava nas avenidas largas, de palmeiras e casas desafogadas (sempre cor-de-rosa) inalava-se uma saborosa sensação. Era bonita! Marraquexe era bonita…e esta? Foi a primeira ruína dos muitos mitos que levámos.

Saímos do hotel em Guéliz e fizemos a comprida avenida Mohammed V em direcção à torre da Koutoubia – o Saïd, o guia de olhos cinzento-esverdeados, que descobriríamos ser um dom nacional, dissera-nos logo que nunca nos perderíamos desde que olhássemos para ela.

Aquela caminhada foi um quadro vivo. As pessoas eram todas muito diferentes. Havia trajes tradicionais e fatos modernos. Havia raparigas de camisolas de alças (segundo mito desfeito) empoleiradas em motoretas nervosas. Havia os rapazes abraçados e de mãos dadas. Havia os velhos de branco. Havia mais ruas largas e muitos jardins. Havia o trânsito anárquico e os polícias gesticulantes no meio do fumo. Havia esplanadas onde os homens preguiçavam e mandavam piropos frente aos seus copos de chá de menta. A impressão que se colava logo era a de uma cidade próspera e irrequieta, agradavelmente viva. Onde estava a cidade com ar terceiro mundista, suja, feia, poeirenta e pobre que mentalmente nos preparáramos para enfrentar de cenho franzido?

Ansiávamos, com o temor a esfumar-se e a curiosidade a aguçar-se, à medida que o fim da avenida se aproximava, e logo que acabámos de circundar a Koutoubia e os seus jardins cheios de pares apaixonados, pela mítica praça Jemaa-al-Fnaa.

Era muito mais do que tudo o que poderíamos ter imaginado. Flutuámos de êxtase e embriaguez, com todos os sentidos muito acelerados e exultantes, no meio da multidão. Os aguadeiros entrapados em corres berrantes agitavam as campainhas, os encantadores de cobras arrastaram-nos para a foto, os vendedores de sumo de laranja disputavam a chamada das “gazelle!”, as mulheres que faziam tatuagens a hena desdobravam os catálogos. Era todo um assédio visual, olfativo, sonoro e terrivelmente humano, que nos fazia rir de forma irreprimível. Subimos ao terraço do café Argana para apreender melhor o primeiro impacto, enquanto nos regalávamos com o incomparável chá de menta e pratos de doces magníficos.
Quando descemos, não resistimos a ir descobrir a perdição dos souks. Quem diria que as ruas eram limpas, frescas e curiosamente ordenadas (embora não demasiado para não tirar nem um bocadinho de picante ao colorido e aos diálogos sedutores de regateio com os comerciantes)?

Percebemos rapidamente que em Marrocos a vida tinha muito mais de jogo do que nos era habitual – jogo entre homem e mulher, entre comerciante e comprador, entre nativo e estrangeiro, entre observador e observado. E que isso não era, de todo, desagradável. De resto, havia ali uma loquacidade, uma cordialidade e uma languidez muito lusas que nos faziam entrar rapidamente no espírito.

Pasmámos também com o incrivelmente bonitas que as pessoas eram. Os rapazes das lojas tinham os célebres olhos cinzento-esverdeados (o tal dom nacional) e trauteavam o hit “Habibi” todos sorridentes quando as turistas reconheciam a melodia no rádio. As raparigas e as mulheres eram ora altivas, ora doces, e perigosamente atraentes, de olhos fundos e passo dolente. Era toda uma cadência de sensualidade que se desenrolava nos passos preguiçosos da multidão que enchia as ruas e avenidas em torno da praça. Era um excesso vertiginoso de gente e pôr-do-sol.

Chegando a hora de jantar, regalámo-nos com tudo o que de saboroso e odorífero se amontoava no estabelecimento ao ar livre da Dª Aicha, em plena praça, debaixo de camadas de fumo que subiam dos grelhados das outras carripanas. Havia espetadas de borrego, várias saladas frescas, cuscuz, camarão e lulas fritas, batatas com cominhos, beringelas grelhadas…enfim. Tudo uma delícia, ao preço da chuva (ou, dada a geografia, deverei dizer da areia…?) e regado com o sumo de laranja fresco que nós achamos que deve ser a essência da beleza daquela gente. Um povo assim, que não bebe álcool e pouco fuma, e que pula e canta de alegria pelas ruas daquela maneira, tem de ter um segredo qualquer. Deve ser o sumo.

E hoje, primeiro dia da incursão no Atlas, com a meta no topo do Toubkal para daqui a 5 dias, sento-me aqui ao meio dia, para o primeiro chá na montanha.

Ait Issa, 9 de Junho de 2002

Água tornou-se a nossa obsessão, e está omnipresente pelos vales, esmagados entre as montanhas e o arvoredo.

Os ribeiros fortíssimos estrangulam nas rochas, e nós banhamo-nos na água gelada e gratificante, aos gritinhos, cobertas de espuma, ante o olhar despudorado das crianças estupefactas (pululantes) e das mulheres que lavam roupa.

O dia hoje foi esgotante. Subimos, subimos sempre, por carreiros à beira de árvores de zimbro e de cabras de balir agudo, que trepam pelas árvores acima para comê-las.

Cada chegada da noite nos assusta um pouco. É uma noite absoluta e as estrelas são muitas mais, e muito mais frias, e muito mais nítidas também. Frio no corpo, frio na alma.

O jantar é sempre opulento e reconfortante – o Ibrahim, sempre a sorrir, faz milagres….que faria ele numa cozinha bem recheada e apetrechada? Porém, assim que saímos da grande tenda branca comum, o espectro da solidão assoma-nos, no meio dos confins do mundo, com três muçulmanos que apesar de cordiais, permanecem estranhos, e dos quais dependemos.

Mas a chegada da manhã transfigura tudo em magnificência e paz, com a sua cor mágica ao erguer do sol. As montanhas crescem desmesuradamente e incham-nos de orgulho e sensação de poder – sobre os riachos, sobre os carreiros, sobre o mundo ocidental esquecido. Os nossos superiores aqui são apenas os miúdos trepadores que guardam as cabras e as ovelhas, correndo penhascos acima. E esses bichos admiráveis a que chamámos, pela velocidade, as turbomulas.

Salvo grandes haustos de ar, água e vistas quando paramos, o dia é passado a olhar para o chão pedregoso e poeirento, atentando em cada passo pequeno. À nossa frente vai deslizando o turbante azul do Hassan.

A cor é o mais penetrante de toda esta terra, quer cidade, quer montanha. Pedras roxas, pedras azuis, cabras simetricamente brancas e pretas como se tivessem caído num balde de lixívia, mulheres de roupas vermelhas, roxas, verdes, laranjas. E a cor da terra, nos caminhos, nos campos, nas casas. A cor da imensa terra. A cor da imensa pedra. A cor verde-prata dos campos de cevada que o Hassan nos ensina a comer ainda imatura.

Outra marca forte desta viagem é o cheiro. Nas nossas pausas civilizadas cheira a chá de menta. Nas aldeias e nos trilhos, cheira a bosta de mula, antes de cheirar à própria mula; nas aldeias e nas mulheres que passam, cheira a fumo de madeira aromática e a cabra. Cheira muito a cabra.

Depois da cor e do cheiro há o som. O som é o arrastar das botas na poeira, o cair das pedras que pisamos nas encostas íngremes, a ameaça do resvalo. O som é a canção aguda das crianças que pastoreiam nos sítios mais solitários e improváveis das florestas e dos montes de calhaus. E o seu pedido irritante, no único francês que sabem, de “bombom”, “cadeau” e “stylo”, precedido de um “bonjour” interesseiro. Crianças muito ranhosas, de olhos desmesurados. O som é o “salaam aleykum” franco dos homens e murmurado das mulheres. O som é o das mulheres ululantes, pela floresta acima, em gritos de satisfação e liberdade por ser domingo. O som é o zurrar das mulas em cada manhã e o ciciado berbere do guia, do cozinheiro e do carregador. O som é o cair do chá de menta, do alto do bule para os copos, a borbulhar.

O som deste silêncio é o mais inquietante que mais ouvi.

Refúgio Nelter, 12 de Junho de 2002

Hoje foi a euforia. Subimos ao Toubkal. 4167 metros!

Saímos às 6 da manhã após uma noite atroz de vento, frio e insónia. O guia ia como sonâmbulo, a andar devagar ao invés do seu hábito. Mas nem assim se coibiu de escolher, logo para abertura épica, uma passagem do rio que consistia em saltar dois calhaus bem afastados e escorregadios. Ao ver as nossas hesitações, colocou os pés em cada um dos dois calhaus, em equilíbrio precário, e apoiou-nos à medida que passávamos. Não podíamos pensar. Se se falhava, não se ficava com uma perna inteira, por isso, tinha que se passar, tinha que se conseguir. E assim foi.

Houve sensações múltiplas, entre nós. Eu reassumi um orgulho forte – talvez infundado, mas enfim… – de grande amante das subidas. A I. permaneceu inalterada, sempre entusiasta, sem que o esforço sequer rondasse a prostração. A L. sofreu muito com a descida (que já antecipara penosa) e exclamou, no…frio!… do momento, que não valera a pena o esforço. Mais tarde reconsiderou e saboreou a vitória.

Mas foi uma revolução visual – a amplitude, a grandeza, os restos de neve, o leve grão de neblina. E soube-me bem o grito muito agudo e muito livre que atirei no topo a todos os engarrafamentos de estrangeiros e de guias, ao espaço, à promessa do deserto que se vislumbrava ao fundo. Descobri que a altitude me faz bulir o sangue com gosto. E certamente que sem aquela travessia arriscada do rio, que sem o pavor de escorregar na neve e que sem os dedos de humildade a apertarem-me o pescoço quando os precipícios se faziam mais visíveis, não teria tido o mesmo sabor.

Sinto já saudades destas férias. Férias em que se é verdadeiramente livre. Está-se incomunicável e aqui só se é escravo do nosso próprio corpo (readquire-se uma enorme humildade à sua custa), da natureza implacável, dos seres humanos indomados pelos nossos algozes habituais. A bagagem prescindiu de supérfluos, o pó pesa-nos, mas tomamos banho em rios frios e somos terrivelmente felizes assim, em cada baga de prazer ao ar livre.

Há pouco, esgotada, deixei-me adormecer na grande tenda branca onde os homens falam berbere – uma língua embaladora. Uma congregação de guias, cozinheiros e carregadores vindos das tendas ao lado para a nossa. Estou deitada numa esteira ao canto, e os homens berberes continuam a falar enquanto a chaleira para o chá de menta ferve. Apanho algumas palavras que fui aprendendo. Incrível como muitas mais do que imaginamos são similares às portuguesas. Com o tempo empatizámos com eles, e a tranquilidade espalha-se por cima do seu som.

Não sei se alguém compreende isto, mas sinto-me em paz assim, e vou certamente ter saudades da grande tenda branca e das vozes destes homens que falam infindável e afetuosamente entre si.

Aeroporto de Casablanca, 15 de Junho de 2002

Viemos com um nó na garganta de apreensão mas voltamos com um nó maior – de rendição. E de saudades instantâneas e intoleráveis. As tatuagens a hena incrustam-se-nos nos braços e no coração como se fossem desenhos feitos com aquela terra. Às vezes, era uma terra muito vermelha.

Raquel Ribeiro, Lisboa
20.06.02