Zimbabué, Botsuana: Das Cataratas Vitória ao Delta do Okavango (versão a acampar) – Anabela Mendes, Lisboa
Anotações africanas
A viagem ao Zimbabwe e ao Botswana, para ver animais selvagens, vulgo safaris, começou com a contemplação das Cataratas de Vitória por uma segunda vez. Estranhos momentos de revisitação de um lugar espantoso, que costuma tirar a respiração ao visitante e o deixa em suspensão. O rio Zambeze tombava sobre pedregulhos cheios de vegetação muito antes de se deitar no Oceano Índico já a partir de Moçambique e sob a forma de delta.
E foi assim que me dividi, como o rio em queda, recuperando em turbilhão anteriores viagens da natureza desta que, ao se iniciar nas Cataratas de Vitória, parecia repetir um ciclo que afinal aconteceu de forma diferente. E a diferença estava também nos propósitos que fundavam esta viagem, uma oferta a filho e netos.
Nunca pus em causa a bondade da ideia que se revelou magnífica para todos, ainda que com distinta apropriação.
Quando a viagem terminou e o cansaço de 24 horas de aeroportos para lá e para cá tinha sido incorporado, fiz uma pergunta aos netos: «Meninos, de que é que gostaram mais?» «De tudo, avó.»
Ao filho nada perguntei. «Foste uma pessoa muito corajosa e uma grande viajante. Quase sempre te esqueceste de que tens 73 anos. E as dificuldades por que passaste, sobretudo com os joelhos, foram integradas no nosso dia-a-dia. Obrigada por nos teres convidado e nos teres levado a estes lugares tão especiais.»
Ainda tenho dificuldade em falar desta África, que monta os seus circuitos turísticos como um acto de caça cheio de subtilezas e que leva gente de todas as idades e ocupações a querer ver animais selvagens na plenitude espácio-temporal de países com vizinhança. Apesar disso nada contra, sabendo que os animais se estão mesmo a borrifar para nós. Aninham-se os estrangeiros em veículos com e sem protecção metálica acima das cabeças (safaris em 4X4 de todas as marcas e feitios), adequados para a observação. As gigantescas objectivas (tenho uma, embora a use pouco, de 400 mm e que gostaria de abandonar, quando for possível, por uma leica maneirinha), entalam-se na pequena máquina fotográfica de cada um, com e sem tripé e contrabalançam com sofisticados telemóveis, cuja função é ser miniatura visionária.
Esta classe de pessoas procura os parques nacionais, e por lá se entretêm. Podem sair das viaturas para esticar as pernas sem grande perigo. Estes programas não têm obviamente caminhadas. Caminhar em direcção a quê? Nós também estivemos em National Parks, onde encontrámos inesperados animais, alguns absolutamente hilariantes em exercício físico matinal. Parques Nacionais há-os às dezenas e proporcionam todo o prazer a quem se refere a estas saídas como safaris. Há inclusivé safaris nocturnos, em que o visitante aponta forte lanterna para o meio da floresta, onde os animais dormem. A crueldade parece não ter limites na Natureza que está de facto protegida. Já não se corta, que saibamos, o corno ao Rinoceronte.
Mas o jogo entre o ser humano e o animal depende sempre de que nada possa vir a acontecer, isto é, que a paisagem seja soberana sem que os animais se deixem ver. . O chamado safari estragado. Por mais que os guias frisem que a sorte nem sempre acompanha os observadores, estes convencem-se de que não sairão da 4X4 sem verem um bom leopardo disfarçado num ramo de árvore. A frustração de não ver o que se quer ver deixa os turistas infelizes. E eles querem ver os gigantes da floresta: the big five, coisa que cada vez se torna mais difícil porque desses big five há espécies em extinção como o Rinoceronte. Em toda a minha experiência nesta área vi um único rinoceronte muito ao longe e foi no parque Kruger, onde os animais atravessam a estrada asfaltada e parecem estar à nossa espera como treinamento. E por que não olhar para os pequenos animais? As aves fabulosas em período de gestação, os cânticos à capela, o acordar matinal com os pássaros! Os vôos em arco, a coloração magnífica. O mundo animal, naquela África, não pára de nos surpreender e comover.
Foi neste sentido que beneficiámos de um programa que tendo parques nacionais incluídos, se centrou numa região mais profunda do território do Botswana – Moremi – reserva natural. A reserva natural é mesmo um lugar onde os animais estão por sua conta e risco. Entre a vida e a morte não há paliativos. Há aceitação e integração. O ser humano não interfere nas relações e comportamento das diferentes espécies em convívio. Por exemplo, o cão listrado, uma espécie muito antiga na região, em extinção e perigosíssima para o homem, foi avistada por nós em alcateia. Sentia-se no movimento dos animais a busca pela presa.
Cão Selvagem Africano vs. Hiena, Conheça a Diferença! (naturlink.pt)
Aprendemos imenso, porque tinhamos óptimos profissionais connosco. O guia geral, o Richard (cantava e gargalhava como ninguém), foi aquele que nos ia instruindo sobre história, política (as relações com o Reino Unido), economia, etc., as etnias (aqui entra, por exemplo, aquele filme fabuloso Os deuses devem estar loucos sobre os bosquímanes que integram o território botswano, mantendo ainda muitas das tradições mais antigas dessa comunidade, como o falar por estalidos. Há mulheres de outra etnia, as Herero, que se vestem como as ladies no Reino Unido no séc. XIX e se apresentam publicamente recuadas 200 anos.
herero people – Procurar (bing.com)
Outras cobrem o corpo com uma pasta avermelhada e passeiam-se nuas com os filhos pela mão. Esta etnia não vimos por opção, pois a visita à aldeia era paga. Não quisemos ir a uma exposição.
A questão essencial, apesar de tudo, é como olhar os animais, sabendo que eles pensam à sua maneira e resolvem muitos problemas a solo e em conjunto. Não há agressividade sistemática. Quando eles se chateiam uns com os outros, entram em duelo e aos urros, treme e ecoa a floresta, tudo treme, vence a Natureza. Até o crocodilo é paciente e espera que a presa venha ao seu encontro. Os bichos de grande porte não esperam ser incomodados pelos humanos e, por isso, olham-nos com bonomia e sempre na distância. Com sabedoria. Seguem o caminho que escolhem como reais sobreviventes num ambiente que lhes é favorável. Há lugar para todos. Ajeitam-se. Mesmo os leões, aqueles que vimos ao longo de várias horas, e que estiveram em contradança até se protegerem do calor entre arbustos, nos deixaram um entendimento de respeito e de uso do instinto. A história amorosa entre estrangeiro e a mãe de uma completa família de leões não passou de completa perda de tempo. O pater familias demostrou através de linguagem corporal e da voz que ali não havia promiscuidade. Tornou-se este comportamento o sinal maior para o de fora, que se arrastou entre erva e terra até desaparecer humilhado no horizonte. Repetem-se alguns procedimentos comuns ao humano e isso fortalece o que nos aproxima dos animais sem, no entanto, criar simbiose. Mesmo pensando no valiosíssimo trabalho de Jane Goodhall com os chimpazés, não podemos esquecer que esses animais são os que mais próximos estão de nós. Um abraço entre Goodhall e um chimpanzé é amor puro.
A exemplificação de relações entre animais e humanos perde-se no tempo com actos heróicos entre ambos.
Mas não é a isso que procuro responder.
Estar naqueles lugares em presença de animais que continuam a conservar nos seus comportamentos, aspectos, acções, a História que com eles partilhamos independentemente das espécies a que pertencemos, tem para mim uma função capitular: convocar uma memória colectiva muito ancestral do nosso existir, pela parte que nos toca, como sismógrafo. Não é a diversidade que nos afasta uns dos outros, essa é característica que se torna relevante no reconhecimento ainda de zonas do planeta, nas quais os animais nos ensinam, sem querer, que é possível vivermos uns com os outros de forma pacífica. Atravessar uma reserva natural como Moremi e lá ficar a morar por uns dias numa tenda, faz-me lembrar a passagem simbólica dos círculos polar ártico e antárctico, os lugares do limite, onde chegamos em fim de linha e onde tomamos consciência da nossa pequenez, eventualmente da nossa bravura, mas não das injustiças a que assistimos, que partilhamos com outros, incapazes de oferecer resposta, e que acabam por determinar que a nossa liberdade de existir, como a dos animais, seja possível e desejável.
Numa das noites em Moremi, sob lua cheia, atravessaram-se duas hienas, dois leões e algumas impalas por entre as nossas tendas. Não dei por nada. O guia local, Ra, esteve mais atento do que todos os outros. Explicou-nos na manhã seguinte que os animais nos vêem como sombras. Acontece, aliás que estando nós dentro das tendas, essa configuração nem sequer existia. Os meus netos acordaram com a passagem dos animais e encheram-se de bravura. Mantiveram o silêncio. Agarraram-se com mais força ao pai.
Não me vou esforçar por querer responder (fi-lo de forma breve no questionário) a tantas outras coisas proporcionadas por esta viagem cheia de simbolismo. O mistério mantém-se. É evidente que o termo de comparação a que nos ligamos de forma natural está sempre presente. A comoção é grande quando nos desligamos de relações imaginadas, porque pertencemos a uma outra realidade. Tudo começa em sermos nós a estranheza e em estarmos rodeados só de negros. No supermercado, na rua, à entrada de um parque de campismo, no meio da selva. As línguas faladas são-nos desconhecidas. Canta-se para afastar os maus espíritos. Na Ásia é tudo muito diferente e por outras razões. África, esta África que vai aprendendo a mostrar o que a Natureza ainda tem em reserva, é a perfeição harmónica a que aspiramos. Mas isso não deixa de ser ao mesmo tempo o lugar de uma insondável perplexidade.
É pouco o tempo para observar. Duas semanas de visita têm marcas de superficialidade que passamos a ler com cautela. E é por isso que não consigo resistir ao envio de umas quantas imagens, só porque lhes acho graça, e essas imagens fazem falar o meu espírito nas respectivas ocasiões. Às vezes é a surpresa e o ataque instantâneo, outras é o namoro da luz, em algumas os animais já são subsidiários e a concentração é na entourage.
Confesso que fiz fotografia, à minha maneira, com dores. Nunca tal tinha acontecido. E porquê? Nem sei bem explicar. Um misto de prazer encapotado, um arquivo para outros, os meus netos. Talvez eles nunca venham a ver esta colecção, aquela feita a pensar na Arca de Noé. A planície da savana estendia-se por muitos quilómetros e nela os animais estavam juntos ao fim da tarde, cada um no seu espaço e ao mesmo tempo no espaço dos outros. Esta é para mim a grande lição. Como pensam os animais? Como não resistem à sedução? Entre os leões há sempre um atacante que tenta a sua sorte com a mulher de outro. Como se tornam cobardes e orelhudas as espécies? Como deixam que a morte chegue e os enfrente e não recuem? Esta visão teve um cheiro nauseabundo e expunha-se putrefacta entre árvores. Um elefante já estraçalhado por abutres. Esventrado. Não vale ajudar a morrer animais selvagens ou tentar salvá-los do que não tem possível salvação. Empatia e compaixão existem, claro, mas de outra maneira. Ter pena dos animais, destes animais, é o pior serviço que se lhes pode prestar. As suas vozes ecoam na noite em disputa e trovejo, impõem-se em eco. Há desgosto misturado e sublevação. Esse é o tempo de nos calarmos e de escutarmos o que a Natureza tem para nos dizer.
Anabela Mendes
3.5.2024
Nota final
Esta viagem foi muito bem planeada e resultou em pleno.
Os aspetos que mais me agradaram foram a vastidão e a cor das paisagens, o silêncio, a bravura dos animais.
O que menos me agradou, apenas a trepidação do camião.
Tudo foi apresentado com grande clareza. Não senti falta de mais explicações.
A Rotas do Vento habituou-me a receber a informação necessária e útil.
Motorista, cozinheiro e guias (locais e geral) trataram-nos como se fossemos das suas famílias.
Existe uma fotografia nossa com estes homens-grandes na entrada do aeroporto de Vitoria Falls a que tentarei chegar.